HERÓI DE CARNE E OSSO

HERÓI DE CARNE E OSSO

Confesso que nunca me senti atraído por ver atletas envolvidos em eventos realizados em condições absolutamente extremas como se daí se detectassem os grandes heróis do desporto mundial. Existem naturalmente eventos que por diversos motivos podem acabar por se realizar em condições menos propícias, muitas vezes de forma absolutamente inesperada e que confrontam os atletas com dificuldades imprevistas e de enorme impacto no seu rendimento desportivo e possivelmente até na sua saúde. Este é um risco que pode ocorrer e que todos devemos tentar minimizar. Contudo, transformar em “heróis” aqueles que se confrontam com condições de temperaturas ou humidade absolutamente extremas intencionalmente escolhidas como se fosse um ato desportivo exemplar, sempre me fez imensa confusão. Teria muitos exemplos que podia descrever, mas prefiro ficar pela ideia de que tudo no desporto deve ponderar pelo bom senso e por limites que passando acima do aceitável podem comprometer de forma séria a saúde dos praticantes.

Foi por isso com desagrado que assistí aos mundiais de atletismo no Qatar. Confrontar os atletas com condições que se conheciam à partida como de um perigo absoluto dados os valores de temperatura e humidade é usar os atletas como instrumentos de algo que dificilmente entendemos. Talvez falemos apenas de negócios que fazem frequentemente do desporto, tudo menos espectáculo desportivo. Não é este triste espectáculo de atletas a serem transportados para equipas médicas em desespero e condições de saúde assustadoras que fará do atletismo e particularmente da maratona um espectáculo desportivo de qualidade. Os resultados da maratona feminina ilustram de forma triste o caminho que a IAAF optou por seguir. As 28 atletas desistentes da prova e os péssimos resultados finais, fazem-nos pensar que tudo interessa menos a qualidade técnica dos resultados desportivos alcançados. Mesmo com a prova a ser realizada pela meia noite, os 30 graus de temperatura associados a uma humidade próxima dos 90%, já eram esperados por todos, quando afinal Doha foi a cidade escolhida por critérios que são muito difíceis de compreender por quem realmente gosta de Atletismo.

Entretanto, assistimos a eventos privados de enormes maratonas mundiais em que os seus organizadores investem e apostam tudo em favorecer enormes resultados técnicos. Aqui procuram-se as condições mais favoráveis para grandes resultados desportivos. Berlim, Valência, Londres, Copenhaga e até Vienna, cidade escolhida para envolver grandes figuras da corrida mundial para se baixar das duas horas na maratona. Algo parece estranho no meio de todas estas opções. Quando empresas privadas se unem com o objetivo de dignificar a corrida e tudo o que verdadeiramente apaixona os aficcionados que são os resultados de excelência, temos por outro lado uma Federação Internacional e muitas vezes nacionais a fazerem opções no mínimo estranhas e que antecipadamente se sabe serem contrárias ao desempenho técnico dos atletas. Quando olhamos para as Federações da modalidade e descobrimos que não é a estrutura dessas federações quem mais anseia pela melhorias técnica de resultados desportivos e pela salvaguarda dos atletas e da dignificação da modalidade, algo de tremendamente errado parece estar a acontecer. 

Da minha parte interessa-me muito assistir a eventos de enorme qualidade técnica, de investimento nos atletas e de procura pela superação humana em eventos desenhados, preparados e participados com vista a enormes resultados desportivos que podem ficar na história da modalidade. Afinal quem se lembrará da Maratona feminina dos mundiais no Qatar? Entretanto ficamos todos motivados com provas como a Maratona de Berlim ou a tentativa em se baixar das 2 horas em Vienna. Espectáculos desportivos realmente de élite que a todos os níveis ultrapassam de forma clara a maratona de um Campeonato do Mundo incapaz de trazer para a modalidade os investimentos certos e uma atitude de dignificação e de investimento técnico e até científico na modalidade para que ao fim de cada evento possamos sentir que de alguma forma esse evento terá construído para uma evolução histórica da modalidade como deveria acontecer.

É este passo de qualidade que a modalidade necessita. De investimentos na excelência que tragam ao publico em geral uma modalidade cada vez tecnicamente mais evoluída e que seja inspiracional para todos. Quando podemos assistir a um evento como o Ineos 1:59 Challenge, mesmo sem sabermos se o objetivo será alcançado o que podemos ver é a excelência de atletas incrivelmente preparados e capazes de correr 42kms a 2:50/km ou menos. E vê-los a correr a esta velocidade com uma facilidade e atitude económica que impressiona, faz-nos viajar pelos muitos anos de treino e de foco diário em tarefas nada fáceis de concretizar numa frequência diária. De outra forma não seria possível. São muitos anos de treino, sem desvios, com um foco e resiliência que é um enorme exemplo para todos nós e para aquilo que deve constituir uma orientação para as nossas vidas.

Ineos 1:59 Challenge terminou: 1:59.40! Brutal!!! O que fica desta prova vai contudo muito para além do resultado final. Foram feitos investimentos que ficam na modalidade e nos atletas. Equipas técnicas e científicas que desenvolveram o melhor conhecimento para apoiar estes corredores e atletas de excelência que saem com motivação reforçada e a acreditarem que não devemos de todo impor limites a nós próprios. A maior parte dos atletas comuns focam-se mais no conforto de pensarem que não é possível correr mais rápido em detrimento de desenvolverem desafios mentais de superação e de risco. O que fica deste brutal evento desportivo é o exemplo que nos transmite e o enorme “combustível” motivacional que nos deve dar a todos. É disto que a corrida necessita e são exemplos destes em que a sociedade actual se deve inspirar em particular para as gerações mais jovens. É que para se atingir a excelência, cada um de nós tem de se tornar num ser humano o mais excepcional possível. Eliud Kipchoge é um atleta que nos impressiona, porque antes de se tornar no atleta que é, soube tornar-se num ser humano excepcional e são estes valores que o desporto nos ensina. Antes dos kms e da velocidade, está em causa a formação de um ser humano de excepção porque a cada momento, a cada prova, a cada desempenho esses valores humanos estão a ser colocados sempre à prova, nos mais pequenos pormenores. Para os mais jovens a mensagem é clara, “torna-te num enorme ser humano, muito antes de te quereres tornar excepcional em qualquer actividade profissional”. E é tão bom, estarmos numa modalidade capaz de nos ensinar tanto, com heróis de carne e osso, que nos transmitem tantos valores para a construção de uma sociedade melhor. E quando tudo está mais difícil, quando a fadiga está nos níveis mais altos, Eliud Kipchoge dá-nos a melhor receita durante a corrida e é tão simples… apenas sorrir, sorrir várias vezes e dares informações ao teu corpo e à tua mente de que és mesmo capaz de tudo! 

SEJAMOS TODOS ATLETAS DE ELITE

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(N)A MEDIDA CERTA

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