Contributos para a construção de um atleta de elite

Contributos para a construção de um atleta de elite

Este texto foi publicado em 2020, na edição número 13 da revista INSIDE Running as a lifestyle.
— Inside Running as a lifestyle

Este capítulo é normalmente dedicado a assuntos mais centrados no processo de treino desportivo. Já abordámos temas relativos a avaliação e controlo do treino, prescrição de treino de força, condição física no futebol ou a estratégias de treino específico de corrida, entre outros. Tem de ser claro para todos que quando nos confrontamos com a prescrição do treino, temos a oportunidade de fazer chegar a cada atleta o que cada um de nós pensa sobre treino, alicerçado num determinado corpo de conhecimento que tem de estar adaptado a necessidades muito individuais, nem sempre fáceis de entender e de gerir. Este capítulo não será, por isso, dedicado à prescrição de treino propriamente dita, mas a algo percursor e que definirá a capacidade de um determinado modelo de treino poder ser implementado com sucesso, em diferentes atletas. Talvez estejamos a falar mais de aspectos sociais, psicológicos ou até de uma determinada filosofia de treino, mas sem os quais nada funciona. Quantificar volumes e intensidades de treino não será suficiente se não estivermos capazes de avaliar comportamentos e adaptarmos a prescrição a cada atleta.

É, para nós, claro que existem aspectos de disciplina no processo de treino que determinarão por completo o sucesso ou insucesso da performance desportiva de cada atleta. Alguns problemas podem mesmo estar escondidos sobre estratégias de “camuflagem” que cada atleta vai desenvolvendo ao longo da sua carreira, mas que é importante que o treinador saiba identificar para definir a sua estratégia, de fazer chegar a cada um a sua forma de pensar o treino.

Um dos problemas de base relaciona-se precisamente com a disciplina. Não existem adaptações físicas ou técnicas bem sucedidas sem que alguns princípios básicos de disciplina estejam garantidos. Um corpo bem trabalho em diferentes domínios físicos, será também um corpo bem trabalhado no domínio mental. Para isso, o atleta terá de ser capaz de se auto-disciplinar e se focar na qualidade dos seus treinos, qualidade essa que se não existir, levará a sessões de treino de mera repetição de exercícios isenta da desejada qualidade adaptativa. Como treinador, fui muitas vezes confrontado com atletas que diziam, “mas fiz tudo o que me mandou fazer”, assumindo que a preocupação se focou prioritariamente num cumprimento quantitativo, frequentemente desprovido de qualidade, que só é possível, quando vem de uma disciplina interior exemplar no cumprimento, não apenas do que lhe foi dito para fazer, mas como se deveria envolver com cada treino. A capacidade de um atleta se manter determinado nas tarefas propostas e focado nas suas aprendizagens sem se distrair é mais difícil do que se pensa. Já fomos muitas vezes confrontados com afirmações como “não é possível fazer”; “não sou capaz” ou mesmo “nunca serei capaz”. Este perfil de atleta está mais focado na descoberta de impedimentos (atitude protectora) do que em concentrar-se nas actividades propostas por parte do treinador (atitude desafiante). O atleta até pode não perceber o que se procura com determinado exercício ou o que de positivo pode advir dessas rotinas regulares de treino, mas o respeito e disciplina em relação ao conhecimento do treinador deveria ser o mote de uma responsabilização mútua perante a qualidade que se procura no processo de treino. A disciplina é um ponto vital, funcionando como a capacidade de o atleta se manter focado nas tarefas e executando-as sempre da forma mais correcta e sem distracções. Isto não é fácil na grande maioria dos atletas, que muitas vezes se distraem ou que até são fontes de distração para os restantes colegas de treino. Ter atletas fortemente comprometidos com o treino deve tornar as sessões de treino em momentos de reflexão interior, em que o atleta está de forma constante a “olhar” para dentro de si próprio, à procura das melhores formas de aperfeiçoar e rentabilizar cada gesto ou cada tarefa de treino.

Contudo, o processo de treino, deve ser também um momento de liberdade do atleta, que será tão mais útil e aplicado quanto maior for o nível de responsabilidade individual de cada um. Não fará muito sentido o treinador funcionar como um sistema de controlo negativo em torno da vida do atleta e do nível de cumprimento que este demonstra em relação ao seu treino. Um atleta que seja cumpridor e que esteja genuinamente focado nas tarefas que o treinador lhe prescreve, não vai mudar a sua atitude apenas por ser sujeito a qualquer sistema de controlo ou vigilância. É importante o treinador perceber quais os atletas que lhe dão garantias de seriedade e disciplina com o seu treino, pois serão esses atletas que terão maior margem de progredirem nas tarefas e vão arriscar em processos de treino mais elaborados e complexos. A responsabilização dos atletas perante o seu próprio treino e a sua própria progressão será sempre um ponto chave. Não basta o atleta esperar que o treinador lhe dê mais complexidade nas sessões de treino para que evolua. É necessário, em primeiro lugar, que o atleta mostre disponibilidade e entrega, que dê confiança ao treinador no crescimento dessa complexidade. Na verdade, não é o treinador o principal responsável pelo crescimento da complexidade das cargas, mas sim o atleta que lhe vai dando a confiança necessária para que esse crescimento possa ser uma realidade capaz de se transformar em adaptação consistente e progressiva de rendimento. Neste caso, o diálogo joga um papel decisivo, em especial na construção de uma comunicação de verdade, que deve ser directa mesmo que possa ir de encontro a crenças erradamente construídas ao longo dos anos.

Não é de todo desejável que um atleta não esteja disponível para ouvir verdades sobre o seu empenho ou rendimento, assim como não é nada positivo que o treinador imponha um conjunto de tarefas não desejadas por parte do atleta. O atleta deve ser o primeiro interessado na sua evolução desportiva e o treinador deve corresponder de forma equilibrada ao que o atleta coloca como capacidade de empenho e de foco. Já treinámos atletas capazes de trabalhar ao nível dos melhores do mundo, o que nos responsabiliza no sentido de lhes dar as tarefas correspondentes ao nível de exigência que definiram para a sua carreira, mesmo que, por falta de potencial genético, nunca passe de um atleta perfeitamente normal. Também já nos envolvemos com atletas que, mesmo com talento não passam de atletas medianos, no que diz respeito ao seu empenho, disciplina e comprometimento com o seu próprio treino e evolução. Nestes casos, compete ao treinador saber esperar por uma possível mudança no perfil mental do atleta ou fazer o melhor, que possa ser possível, para o nível de entrega que o atleta definiu para a sua carreira. É de esperar que qualquer treinador tenha as suas próprias linhas orientadoras e requisitos de disciplina que serão importantes, até ao limite que cada atleta impõe a si próprio. Exige-se assim que o treinador seja flexível e atento aos limites que cada atleta, consciente ou inconscientemente, coloca a si próprio.

Outro problema a ter em consideração está relacionado com as estratégias sociais de trabalho em grupo. Ao longo dos anos, vários atletas e treinadores têm referido a importância do trabalho em grupo pelas sinergias que pode promover. Mais recentemente, Eliud Kipchoge tem referido o mesmo, apontando parte do seu sucesso ao empenho das tarefas de grupo e dos seus colegas de treino. Contudo, e se os colegas de treino em vez de estimularem, incentivarem a diminuição de entrega e de foco nas sessões de treino? E se um atleta, por não se sentir tão disponível num determinado dia tentar “boicotar” o empenho dos outros? Ou se alguns parceiros de treino intervirem mais para distraírem do que para focarem os seus colegas? Este é um processo de interação social complexo e que exige alguma atenção e reajustamentos na organização das sessões de treino por parte do treinador. Nem sempre a sessão de grupo poderá funcionar da mesma forma em todos os treinos, com todos os atletas e em qualquer circunstância. É necessário ajustar essas interações sociais de modo a que, em vez de benéficas, se tornem potencialmente destruidoras do ambiente de trabalho e do foco que se exige.

O sonho de qualquer treinador passará por ter nos seus atletas um elevado nível de responsabilidade, adequado às suas potencialidades e respeitador das aspirações dos seus colegas de treino. Conseguir isto nem sempre é fácil e existem interações individuais com cada um dos atletas e a definição de linhas orientadoras complementares e distintas para cada um. Quando essa responsabilidade individual é elevada, tudo se torna mais fácil. Desde a prescrição do treino (que pode ser mais exigente) à concretização dos efeitos de treino, que podem ser surpreendentes e capazes de levar cada atleta ao máximo das suas potencialidades desportivas.

Os tempos que vivemos são complexos e permitem-nos avaliações de estados mentais muito individuais em relação ao momento da pandemia que se vive, devido ao Covid-19 e à ausência de competições que sirvam de objectivos capazes de gerar uma boa motivação individual. Se alguns atletas se desmotivam e abrandam de forma significativa o seu regime de treino por não terem objectivos definidos para breve, outros conseguem perceber o que têm a ganhar em se focarem em si próprios e na evolução que podem continuar a ter, mesmo com total ausência de competições. A responsabilidade e comprometimento individual será uma característica fundamental nesta fase, mas que não deixa de ser diferente das que já os caracterizavam anteriormente. Só ficam mais visíveis e expressivas.

Enquanto treinador, a gestão destes aspetos é mais complexa do que a gestão do próprio processo de treino. Mais complexa, mais desgastante, mas também mais desafiante. O objectivo desportivo de um atleta não depende de treinar mais, mas sim de treinar com o foco que transforme cada momento, a cada sessão de treino, num particular desafio biológico ou mecânico que o leve verdadeiramente à performance. Performance essa que deve ser medida não em relação à comparação com os outros, mas às capacidades que cada atleta tem de melhorar. Já treinámos atletas que ficaram muito indignados por lhes dizermos que não estavam a fazer o que podiam, ou o que deviam, quando o sentimento que tinham era de que estavam a cumprir o seu plano de treino. Faziam os quilómetros propostos e não falhavam uma sessão de treino. Não percebiam que o que estava em causa não era simplesmente um cumprimento de tarefas, mas sim a procura de uma superação constante. A superação é uma palavra por vezes gasta e perdida em desejos por parte dos atletas, quando devia ser a palavra orientadora em todas as sessões de treino. Porque a cada exercício, repetição ou quilómetro, é sempre possível que o atleta se supere e é este o tipo de atitude que os pode levar a vingarem. Orientar o conceito de superação, apenas para a participação competitiva e não para uma superação diária, deixará o atleta demasiado distante das suas reais capacidades de prestação.

O treino deve ser um processo de reflexão constante. A cada dia, o treinador deve rever processos, percepcionar o que funcionou e o que pode melhorar e, adoptar estratégias aperfeiçoadas. Esta é uma responsabilidade do treinador que deveria ser partilhada pelo atleta. A cada dia de treino, cada atleta deverá reflectir sobre o que fez, como fez e o que podia fazer melhor. Quase como se de um processo de “decorar a matéria dada” se tratasse. Como se imprimisse na sua cabeça as rotinas certas, a forma como deve estar a cada dia de treino e as respostas que deve ter a cada momento para garantir a superação que deve obter a cada sessão de treino, para que depois, a superação competitiva fique mais perto.

A chave para o sucesso reside, numa boa aceitação dos fracassos. Este é um problema incontornável no processo de treino, em especial quando o atleta não está preparado para falhar e quando essa falha gera comportamentos e respostas incorrectas, que só se justificam pela sua incapacidade de assumir erros. Treinar o atleta para falhar é treiná-lo para ser bem-sucedido! Mesmo que durante anos, esta ligação seja muito difícil de perceber. Aceitar o fracasso é tornar o atleta capaz de lidar com a dor do insucesso e encontrar as aprendizagens que transformem esse fracasso num atleta bem-sucedido no futuro. É por isso que, considerámos sempre mais fácil trabalhar com atletas cujas expectativas de rendimento sempre foram mais baixas, do que com jovens mais talentosos, cuja abordagem de quem os envolve (clubes, patrocinadores, federações) os transformam em atletas incapazes de lidar com a derrota e, com isso, incapazes de lidar com as aprendizagens que daí podiam advir. Este problema leva a que muitos atletas construam um processo arrogante de uma espécie de conhecimento, suportado em princípios profundamente errados, de acharem que estão sempre certos, mesmo nas suas atitudes mais inadequadas perante um fracasso. Quando se consolida essa ideia torna-se quase impossível retirar aprendizagens.

É decisivo substituir a ideia do atleta de que “eu sei que estou certo”, pela ideia, “como é que eu sei que estou certo?”. Esta é uma oportunidade para um pensamento de humildade que poderá ajudar a aprender com o fracasso e que poucos atletas sabem absorver de verdade. Se assim não for, tudo não passará de uma mentira que se irá consolidar (muitas vezes apoiada por amigos escolhidos para estarem sempre de acordo...) e memorizar, transformando negativamente os valores deste desportista.

E quanto maior for o fracasso, maior será a oportunidade de crescimento pessoal e de edificação de valores correctos. A consciência dos erros, seria o primeiro passo do atleta para ser agente de mudança do seu percurso de modo a encontrar as soluções que alavanquem, de forma oposta, o seu rendimento desportivo. Cometer o erro e não ter capacidade de o assumir, só poderá levar a uma repetição infinita de erros, que irão acontecer todos os dias, a cada treino, e que comprometerão de forma irremediável a aprendizagem que tornaria o atleta capaz de uma atitude mental de excelência. Existem atletas que só estão no treino para ganhar. Se isso não acontecer, simplesmente desaparecem, não competem, retiram-se, refugiam-se. Atletas que se sentem motivados pela vitória e não pela sua evolução, irão preferir ganhar em competições de nível inferior, a perder em provas de nível mais elevado. Neste caso, o facilitismo vence o desafio e, a superação deixa simplesmente de acontecer, por se perderem as verdadeiras aprendizagens para que o processo de treino se torne mais abnegado e consistente.

Ser atleta de elite, vai muito para além de querer ser dos melhores ou de querer atingir um determinado resultado. Ser atleta de elite, exige humildade, entrega e consistência.

Humildade porque será a ignição dos comportamentos necessários para levar a uma entrega total no processo de treino. E, porque será entendido que é no mais profundo respeito pelo treino que o atleta irá traçar o seu futuro.

Entrega porque o atleta terá de colocar os seus objectivos acima de (quase) tudo. Não bastará querer ter elevado nível e depois preencher a vida com mil e uma tarefas e actividades que não permitem o foco em si próprio, no seu rendimento e na sua recuperação. A entrega que permitirá a ausência de distrações e uma concentração nos imensos detalhes que podem ser melhorados.

Consistência porque nada do que podemos ter escrito antes, terá resultado se não for praticado dia após dia, ao longo de semanas, meses e anos. Não basta que o atleta se lembre que num determinando momento esteve particularmente focado com o seu treino. Pelo contrário, é importante que o atleta não se lembre de episódios de distração e de perda de foco ao longo de anos.

Ser atleta é muito mais do que querer. É acima de tudo fazer!

Nem tudo é possível

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