O limiar anaeróbio no treino de corredores

O limiar anaeróbio no treino de corredores

Imagina que a energia que geres para as tuas corridas se assemelha à gestão de energia de um carro híbrido. Neste caso terás um sistema energético “limpo” correspondente à energia elétrica do carro e se puxares um pouco mais por ti, terás de adicionar uma energia mais potente com consequências metabólicas mais elevadas, que leva à produção de lactato no músculo. Este boost energético corresponderá no carro híbrido à utilização do combustível fóssil que leva à formação de gazes poluentes.

Infelizmente (ou felizmente), a mecânica dos nossos carros está longe de perfeição do nosso corpo e ao contrário de uma viatura, o corpo humano, pode promover adaptações que levem a que qualquer um dos dois sistema energéticos possa ser treinado, para melhorar a forma como é depois utilizado. Imaginem que quanto mais usassem a via elétrica do vosso carro, que teriam cada vez mais capacidade de armazenar energia na viatura e que a capacidade da sua utilização e economia fosse cada vez melhorada. Seria um cenário revolucionário na industria automóvel, e que nós temos “pré-instalado” na forma como usamos energia no nosso corpo durante a corrida. Estamos “tecnológicamente” muito mais desenvolvidos que os modelos automóveis mais avançados e basicamente o que acontece é que se seleccionarmos as intensidades certas podemos estimular ao longo do tempo uma maior capacidade de gerarmos energia aeróbia, capaz de permitir depois velocidades de corrida mais rápidas sem termos de utilizar outras fontes energéticas mais “poluentes”…

Para isso, a definição de faixas de intensidade pode ser absolutamente vital. Encontrar a intensidade máxima em que usamos a energia mais “limpa” permitirá enviar sinais para um aumento de pequenas estruturas celulares (mitocôndrias) presentes nos nossos músculos e que são responsáveis pela respiração celular e com isso para a obtenção de energia. É importante percebermos que a corrida em ritmos desajustados pode levar a uma ativação do consumo de outra fonte energética através da degradação de glicogénio armazenado no músculo e que até me pode permitir correr mais rápido no treino, mas que retiram o efeito de desenvolvimento do número de mitocôndrias, tão importantes para os esforços aeróbios de média e longa duração. Treinar desta forma, pode fazer de nós os campeões dos treinos, mas competidores em desvantagem energética por não termos desenvolvido o que realmente seria necessário para maiores performances competitivas.

O conceito de limiar anaeróbio foi alvo de um trabalho publicado na última edição da revista INSIDE RUNNING AS A LIFESTYLE.

É aqui que surge o conceito de limiar anaeróbio que desde anos 50, se foi desenvolvendo com uma enorme diversidade de conceitos e diferentes formas de determinação. Entre várias possibilidades, tivemos a enorme oportunidade de trabalhar com André Costa e Paulo Santos, ambos professores e investigadores na Faculdade de Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto (atualmente Faculdade de Desporto - FADEUP) que em estreita colaboração de trabalho com a Universidade de Colónia, foram desenvolvendo estudos suportados em protocolos propostos por Mader e Heck na década de 70. É por isso para nós, desde a década de 80, uma prática comum avaliar os níveis aeróbios em corredores, seguindo pressupostos muito bem definidos no protocolo de limiar anaeróbio, para calibrarmos intensidades, prescrevermos treinos, prevermos possibilidades de melhoria de performance em corredores, estabelecermos relações com a performance ou até de anteciparmos problemas de rendimento bastante tempo antes do atleta chegar aos momentos competitivos. Para os mais interessados neste tema, sugerimos a leitura da ultima edição da INSIDE (nº17) que podem adquirir na nossa app, ou até de verem o documentário “Pontos chave na preparação de um corredor”, que podem aceder a partir desta app na área de ENSINO.

Este documentário apresenta entre outros aspetos, a forma como temos usado o conceito de limiar anaeróbio.

Ao longo dos anos, intervimos de forma muito clara com centenas de testes de limiar anaeróbio e o respetivo cruzamento com informações de treino e competição, mas a performance de um atleta é multi-factorial e nunca conseguimos ter atletas com estabilidade noutras variáveis que permitissem resultados de expressão internacional que pudessem, de alguma forma, permitir uma validação prática e mais visível do conceitos que sempre fizeram todo o sentido para nós.

Nos tempos de hoje, os resultados dos irmãos Ingebrigtsen (em especial por parte de Jakob) através do que podemos designar como o ”método norueguês” de treino vêem reforçar a importância do conceito de limiar anaeróbio. O ponto chave de todo o conceito tem como pressuposto a realização de treinos específicos que não são organizados tendo por base indicadores externos de performance, como o ritmo competitivo de uma determinada distância. Em vez disso, os ritmos são definidos tendo por base uma amplitude de valores situados em torno do limiar anaeróbio (2.0-4.5mmol). Surpreende ainda os volumes semanais de treino que são dedicado a estas faixas de intensidade.

Jakob Ingebrigtsen é um dos atletas que terá usado ao longo dos anos faixas de intensidade muito bem definidas para consolidar o seu progresso desportivo ao longo dos anos.

Na ultima edição da revista INSIDE, referimos mesmo alguns exemplos de sessões de treino, realizadas com esta finalidade de promover adaptações fisiológicas certas para potenciar elevados ganhos de economia de corrida. Compreender e gerir quais as intensidades que devem ser selecionadas para determinados treinos, qual o volume que se deve dar a cada uma das diferentes faixas de intensidade e perceber como num contexto de periodização se poderá manipular a oscilação destes valores ao longo da época, fará do treinador alguém com um entendimento bem mais profundo de como tirar o máximo proveito dos seus atletas.

Para um atleta, poderá simplificar menores concentrações de lactato para a mesma intensidade de esforço, melhores resultados em treino e competição e a oportunidade de se fazerem maiores quantidades de treino a intensidades próximas do limiar anaeróbio, ou seja, relativamente rápidas sem que surja fadiga elevada. Quanto maior for o nível de rendimento desse atleta mais facilidade terá em lidar com intensidades de treino próximas do seu limiar anaeróbio. O controlo das intensidades certas e a verificação dos valores de lactato sanguíneo permitirão uma tomada de decisão ao longo da sessão de treino simples, imediata e eficaz. Neste caso, criamos condições para que o atleta seja capaz de receber mais adaptações, em menos tempo de treino, graças a uma individualização do seu treino, tendo por base a escolha assertiva de intensidades em torno do limiar anaeróbio. Sempre acreditámos nesta abordagem, tendo por base um pensamento mais apoiado nas adaptações fisiológicas, do que em adaptações que visavam apenas a procura de intensidades competitivas. Deste modo, o conceito de “no pain, no gain" não constitui a melhor forma de organizar estas sessões de treino. A disciplina e controlo das intensidades de treino serão as palavras chave e que exigem, quanto muito, um foco e uma mentalidade centrada na repetição constante de um estímulo muito bem calibrado.

Jakob Ingebrigtsen, ainda com 16 anos a correr ao seu limiar anaeróbio definido a uma intensidade de 19,3km/h. Os registos disponíveis apontam como tendo passado para 20,4km/h aos 17 anos e para 21-22km/h aos 18 anos. Vigiar estes valores e evolução e calibrar os treinos a cada momento de acordo com estas evoluções, pode ser vital para o crescimento de um jovem corredor.

Neste sentido, se não utilizas o limiar anaeróbio para calibrar intensidades de treino, e independentemente do nível de performance que tens, deverás considerar apoio técnico que te permita uma orientação mais eficaz com uma boa definição de faixas de intensidade. E não precisas de complicar a abordagem com definições de muitas faixas de intensidade que só te vão baralhar. Basta simplificares e seres paciente para que a repetição das intensidades certas te crie as adaptações que farão toda a diferença na tua performance no teu bem-estar. É que adicionalmente, a presença de maior capacidade mitocondrial está também cada vez mais comprovadamente associada a melhor saúde.

10º Training Camp

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10/10

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