(DES)REGULAMENTOS FEDERATIVOS

(DES)REGULAMENTOS FEDERATIVOS

Alguns anos atrás (talvez uns 10 anos), discuti numa Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Atletismo um regulamento de transferências que pretendia atribuir verbas a clubes e associações de atletismo, quando se transferiam atletas que tinham estado na alta competição. Desde que vi esse documento pela primeira vez que não entendi o porquê de um regulamento que podia servir alguns interesses que não conseguia perceber, mas que claramente, não respeitava os interesses e necessidades dos atletas e da modalidade. Na altura estive nessa assembleia geral em representação da Associação de Atletismo de Braga e manifestei o meu desagrado contestando o que me sempre me pareceu ser uma péssima futebolização da modalidade no pior dos sentidos, provavelmente alimentada pelos exemplos que alguns clubes recebem de práticas do mundo do futebol cuja realidade não tem rigorosamente nada haver com a da nossa modalidade. Senti, desde o primeiro momento, que a aprovação de um regulamento deste tipo só penalizaria os atletas e não iria trazer nada de positivo à modalidade. Tenho essa ideia ainda mais reforçada passados todos estes anos. Não se respeitam os atletas, o seu esforço, e por isso mesmo, a própria modalidade, em função de outros objectivos muito particulares que ferem a modalidade de problemas desnecessários.

Na altura, lembro-me de apontar alguns exemplos e como a mobilidade de atletas no país, gera frequentemente necessidades que nada têm haver com guerras clubistas. Na altura dei o exemplo de um clube com o qual me envolvi muito activamente em Vila real (ADC Constantim) que tinha recebido alguns atletas que tinham estado no percurso de alta competição, simplesmente porque tinham ido estudar para Vila Real e necessitavam de apoio técnico e de estruturas de apoio numa cidade estranha. A mobilidade de jovens pelo país, nomeadamente por necessidades de deslocação para prosseguirem os seus estudos era um bom exemplo de como este regulamento não servia o interesse da modalidade. A ADC Constantim, nunca teria possibilidade de pagar transferências de atletas, mas proporcionava uma pista de cinza para treinar, algum material, um balneário e uma equipa técnica. Fui percebendo ao longo da discussão nessa assembleia geral, que as preocupações eram outras que não os atletas e daí se discutia o que as associações regionais iam ganhar e quais os valores percentuais que se ganhariam com as transferências que teriam de se pagas. O meu voto contra de nada valeu.

Passados uns 10 anos, seria de esperar que a Federação Portuguesa de Atletismo tivesse avaliado este regulamento. Isto significaria perceber os impactos positivos e negativos e classificar cada transferência consumada e falhada e quais as consequências. Um relatório anual bem feito e tornado publico, que mostrasse quem ganha com este regulamento e quem perde. Não tenho duvidas que os grandes perdedores serão os atletas. Ou melhor, os atletas que se enquadrem nos sistemas de apoio de alta competição! A verdade é que os atletas entram neste sistema sem se aperceberem e ainda muito jovens, bastando para isso entrarem num presumível apoio à alta competição. Muitas vezes nem qualquer apoio financeiro recebem, mas entram nas listas das compensações pelos seus resultados. Talvez alguns pensassem na altura que seria uma forma de garantir que os clubes de origem fossem compensados de alguma forma pela saída desse jovem para um clube dito grande. Nada mais de errado… O que acontece é que quando o jovem apresenta um talento elevado, é chamado para os ditos grandes clubes numa idade ainda muito jovem, numa altura em que ou ainda não está contemplado pelo sistema de pagamento de compensações ou quando a valor a pagar é ainda muito baixo. O problema surge, quando o clube perde então interesse pelo atleta e este necessita de encontrar uma solução para manter a sua prática desportiva. O jovem até pode ter mantido o seu desenvolvimento desportivo na sua terra natal, com apoios financeiros do clube que o “contratou”, mas porque representou um dos grandes, os valores de compensação serão então avultados para que o clube pequeno, o clube da terra, possa acolher esse jovem na sua estrutura e manter-lhe a motivação necessária para que se mantenha na modalidade.

São mais de 170 atletas que desde idades de juvenis começam a ser listados neste “futebolizado” regulamento de transferências. Um dos atletas que tenho tentado ajudar vem agora reforçar ainda mais o que desde o início pensei  sobre este regulamento. Miguel Borges, foi um jovem que desde muito cedo optou pelos 3.000m obstáculos e foi sendo um dos melhores jovens desta disciplina o que o fez entrar no sistema de alta competição e com isso, claro, entrar no sistema de “valor desportivo acumulado” da Federação de Atletismo. Desde jovem que o SL Benfica considerou que o Miguel, seria uma mais valia para o clube, onde esteve até ao final da época desportiva de 2018/19. O Miguel tinha um contrato com o clube até final dessa época e terminado, o clube prescindiu da sua continuidade. Até aos últimos dias o Miguel, esperou sempre por uma oportunidade do clube que nunca lhe chegou. Sei bem o quanto o motivava estar no SL Benfica e o quanto o afectou não ter sido opção para o clube a partir dessa época desportiva. O Miguel tem como melhor registo 8:38.40 nos 3.000m obstáculos e esteve muito perto de uns Europeus de Atletismo, mas teve os seus problemas na ultima época no SL Benfica, o que terá justificado o desinteresse do clube na sua continuidade. E até aqui, só temos de entender que os clubes têm o direito de fazer as suas apostas e de prescindir dos atletas que entende. Na época que agora termina, o Miguel acabou por se inscrever como individual, pois nem lhe foi dado tempo para que pudesse dialogar ou estabelecer contactos com qualquer outro clube. Passada esta época desportiva, decidimos desenvolver um esforço com diversos parceiros no sentido de criarmos um clube de raíz e que também pudesse ser um factor motivacional adicional para atletas em situações semelhantes ao Miguel Borges. De acordo com o regulamento de transferências a passagem do Miguel agora de individual para outro clube envolve então um pagamento de uma verba em torno de 1.000€! Talvez a memória me atraiçoe mas antes, após uma época como individual o atleta ficava livre, mas pelos vistos a estrutura Federativa achou por bem penalizar ainda mais os atletas.

É legítimo que qualquer pessoa possa fazer duas perguntas básicas:

  1. Não tendo o clube interesse na continuidade do atleta no SL Benfica, fará algum sentido que tenha de haver um pagamento ao clube? O regulamento refere: “(…) a desvinculação de um praticante desportivo do clube em que se encontra inscrito, por decisão unilateral do clube (…), não confere ao clube qualquer direito a compensação (…)”.

Neste caso, bastaria o clube enviar uma informação ao atleta ou à Federação referindo que não teve interesse na sua continuidade e o problema estaria resolvido. Foi isto que aconteceu? Infelizmente não. O clube recusa-se a enviar essa informação!!!

  1. Perante esta intransigência e conhecendo-se o desinteresse do clube na continuidade do Miguel, poderia a Federação de Atletismo solicitar ao SL Benfica que provasse que fez um convite ao atleta (uma carta ou email) para continuar?

Seria expectável que a Federação de Atletismo pudesse intervir neste sentido mas a resposta da Federação é lacónica: “Considerando os regulamentos em vigor e não tendo a FPA conhecimento de que o Sport Lisboa prescinde do Valor Desportivo Acumulado, a inscrição do atleta noutro clube, implica o pagamento do Valor Desportivo Acumulado”.

  1. Afinal, estar na alta competição pode penalizar os atletas ao longo do seu percurso desportivo? Esta é a situação mais cómica de tudo isto, pois se o atleta não tivesse num percurso de alta competição, teria a situação muito mais simplificada como acontece com outros atletas de nível desportivo muito mais elevado do que o Miguel, mas que não estão na “alta competição” (seja lá o que isto for…). Infelizmente podemos dizer que estar no percurso de alta competição, pode trazer prejuízos para o atleta, perante benefícios irrisórios. Neste caso, o Miguel que se quer manter motivado e ingressar num projecto de equipa, terá de desembolsar uma verba em torno de 1.000€, para ser entregue a um clube que não quis a sua continuidade. Mais ainda, ter estado na alta competição, acabou por o penalizar ao ponto de que a alta competição lhe deu alguns apoios, para agora ter de “devolver” apoios que recebeu, devido a um regulamento que não faz sentido nenhum, que não defende os interesse dos atletas e da modalidade e que durante todos estes anos nem a Federação de Atletismo, nem as associações de atletismo tiveram o cuidado de avaliar e perceber verdadeiramente o que está em causa com este regulamento.

Quando está na moda falar em ética e desenvolver projectos de ética no desporto, ética é acima de tudo respeitar os atletas e a sua dedicação. Ética passa por criar regulamentos que defendam os atletas e termos nos clubes pessoas capazes de assumirem as decisões que tomaram e terem sempre o máximo respeito pelos atletas que representaram durante anos as suas cores.

Esta situação leva-nos a pensar para que serve uma Federação de Atletismo e Associações Regionais que não sabem respeitar os atletas e que não se levantam em sua defesa, em função de interesses pouco claros que são atentados à modalidade e à motivação de jovens atletas que podem dar à modalidade a entrega e dedicação que tanto necessitamos de ver nos jovens praticantes. Uma vez mais, confirma-se que no atletismo em Portugal, os jovens são completamente deixados ao abandono em idades críticas de desenvolvimento desportivo e ainda têm de lidar com regulamentos que são verdadeiros atentados à sua motivação e continuidade na modalidade.

VALE(U) A PENA!

VALE(U) A PENA!

“PANDEMIAS” NO DESPORTO

“PANDEMIAS” NO DESPORTO